Abril novembrista… outra vez

As incontáveis cadeiras vazias no auditório do Centro de Arte de Ovar já faziam antever uma sessão solene de 25 de abril, numa palavra, desinteressante. Em duas, protocolar e sintomática. Apesar do número redondo e dos cravos vermelho-vivo distribuídos à entrada, celebrar cinquenta anos da data mais importante da história da classe trabalhadora portuguesa num auditório inundado de luz artificial talvez não tenha sido a aposta mais feliz – ainda menos tendo em conta o sol ameno que se fazia sentir na rua.

Pela manhã de quinta-feira, a poucas horas de uma das maiores mobilizações populares de sempre, na Avenida da Liberdade em Lisboa (em Ovar foram cerca de dois milhares), o povo de Ovar pôde, ao abrigo do regimento “das horas certas” como diria José Mário Branco, assistir, uma vez mais, ao imbróglio político que alvoreceu em abril de 74 e escureceu em novembro de 75. Não se celebrou a rua, a festa e a ingenuidade descarada. Ao invés, celebrou-se a cooptação burguesa da liberdade encarcerada, mediada, calculada, que a democracia liberal representativa, não deixando de ser uma conquista de se saudar, defrauda, por omissão de participação e paranoia político-mediática, os saberes amplos e insubstituíveis da dêmos portuguesa e ovarense.

Citou-se o “dia inicial inteiro e limpo” de Sophia, a trova do vento que passa de Alegre, “a paz o pão habitação saúde educação” de Godinho, assim como o célebre “pior sistema à excepção de todos os outros” de Churchill. A democracia liberal instrumentaliza a poesia que, diminuída à condição de fragmento expansível pelos mass media, esfuma-se, escondida no suor das gravatas e na repetição da mesmidade, já nada significando além de um flagrante automatismo linguístico. Assim, abril vive enquanto a realidade da coisa pública permanecer à mercê das ardilosas sinédoques da democracia representativa. O arquiteto Pedro Levi Bismarck escrevia em 2021 que “a democracia não é a forma política por excelência do liberalismo, é apenas o meio político de legitimar e dissimular a desigualdade do capital, de o transformar em liberté, egalité, fraternité, até ao ponto da sua inverificabilidade”.

O impasse é provavelmente insanável e, em certo ponto, saudável, no âmbito de uma concepção de pluralidade circunscrita à vida partidária, mas não deixando de ser plural. No final, a divisão entre abrilistas e novembristas é por demais evidente. As dinâmicas recentes apontam essa divisão como um organismo que enfraquece o poder popular e o que há de vivo na revolução. O pacto sanitário e unitário é, outra vez, dirigido à democracia liberal-representativa-parlamentar como sinédoque da própria democracia. Se, neste contexto, a defesa é o melhor ataque, só o futuro dirá.

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