Henrique Araújo: “O medo de que outros pudessem crescer fez com que Salvador Malheiro afastasse as pessoas todas.”

Após uma longa carta aberta, publicada na edição de 30 de Setembro, onde esclareceu alguns dos contornos da sua saída da Câmara Municipal de Ovar, Henrique Araújo, do Movimento 2030, concedeu ao N uma entrevista onde passa em revista todo o seu percurso político até aqui, bem como o que se avizinha.

Nesta primeira parte, traça sem tabus os pormenores das discordâncias com Salvador Malheiro, que levaram ao corte de relações entre ambos, até hoje. Henrique Araújo está convencido de que o agora deputado na Assembleia da República se serviu do município como uma plataforma de lançamento da sua carreira política para outros voos. Para trás, assim entende o líder do movimento, Malheiro deixou uma direcção municipal e partidária enfraquecida, com consequências marcantes para o sub-desenvolvimento de Ovar nos anos que se seguiram.

 

Começando pela carta aberta: fica fácil de perceber as razões que levaram à sua saída da Câmara Municipal, mas fica um pouco mais difícil de perceber que competências é que tinha.

O cargo de adjunto político depende da filosofia do presidente de Câmara que estiver em funções. Antes de mim, havia um adjunto, que era um adjunto técnico. Eu entrei como adjunto mais político. O meu trabalho não tinha qualquer vinculação ao que era decidido, mas sim ao apoio que dava ao presidente: visitar uma empreitada, ver os prazos, as inaugurações, a preparação das próprias inaugurações, no fundo. O meu trabalho não era representativo, era de acompanhamento em permanência.

 

Que expectativas é que tinha, quais é que foram atendidas e quais é que foram defraudadas?

O objectivo era pôr em prática o PEDU [Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano], que andaria na ordem dos 6 milhões de euros de investimento a que Câmara teria direito. Desde as eleições de 2013 que andei a ser convidado para o cargo. Não aceitava porque não tinha qualquer interesse em entrar na vida pública. Mas, em 2015, atendendo a tudo o que estava a acontecer, acabei por aceder, sabendo que teria de assumir mais tempo e maior responsabilidade. No início do PEDU, três obras ficaram pelo caminho: Parque Urbano, Cafeteria, Rua do Azulejo, Rua Camilo Castelo Branco e Rua Irmãos Oliveira Lopes. A Câmara, no fundo, perdeu, numa primeira fase, os apoios. Com o receio da continuidade da perda de apoios nas obras seguintes, surge este convite directo para tentar, não só recuperar o que estava para trás, mas arrancar rapidamente com outras obras por causa dos objectivos nacionais em questões de apoios europeus. Nós tivemos de iniciar a obra do Jardim Garrett. Foi uma luta contra o tempo. Se o conseguíssemos fazer, recebíamos esses 850 mil euros e os cerca de 850 mil euros que estavam para trás. Se não o fizéssemos, perdíamos dinheiro para trás, bem como colocávamos em risco todo o restante montante do PEDU, que andaria na ordem de mais de 5 milhões de euros. Nós conseguimos fazê-lo, na altura até se inaugurou uma estátua. Só que depois começou a cair tudo aos trambolhões em cima de mim, de todo lado.

 

Então, quando reivindica por mais autonomia, isso surge na senda do trabalho que demonstrou e sentiu que não lhe foi, de certa forma, dado o devido reconhecimento.

A Câmara fez a primeira parte do primeiro mandato muito baseado no imaterial: festividades e entretenimento. A segunda parte começa a partir de 2015, mais de obra estrutural. É quando aparece a Praça dos Combatentes em Esmoriz, o Centro Cívico de Cortegaça, a Alameda Padre Manuel, o Jardim Garrett, o Posto Médico de Válega. E com isso nós conseguimos a maior vitória eleitoral de sempre no município de Ovar em 2017, com 18 500 votos numa só estrutura. Tudo isto foi feito com muito esforço: nada se fazia sem a assinatura do presidente ou do vice-presidente. Ora, isso num projecto que estava em andamento com alguma velocidade trouxe uma série de inconvenientes. As pessoas que estão no gabinete não têm muitas vezes noção do que se passa lá fora. Comecei a sentir desconforto com alterações feitas, por exemplo, nas empreitadas em curso, alterações que os técnicos desconheciam. Mesmo eu próprio comecei a ter desconhecimento de uma série de situações com as quais era confrontado. Ali percebi que o meu caminho na Câmara Municipal de Ovar estava a terminar. Comuniquei ao presidente a minha decisão no dia 4 de Outubro de 2017, três dias depois das eleições [autárquicas]. O sr. presidente da Câmara contactou-me para me tentar demover. Sempre se defendeu um projecto de despesa porque garantia o eleitorado, mas eu nunca concordei. Foi-me dito que até 2017 teria de ser, mas de 2017 a 2021 íamos então implementar um projecto de investimento. Num jantar tripartido, com o presidente de Câmara, eu e outro actor de responsabilidade política séria, foi-me proposta a continuidade mediante a implementação do projecto, ao mesmo tempo que dirigia a candidatura do dr. Rui Rio a líder do PSD. Disse que preferia ir-me embora naquele dia e ficarmos todos amigos, do que ficar para acabarmos todos chateados. Mas a insistência foi para que ficasse. Então, uma das condições que exigi foi a tal autonomia para a gestão corrente municipal. Ou seja, o executivo decidia, nas reuniões de Câmara, o que entendesse, mas no dia-a-dia eu geria a Câmara. Um pouco aquilo faz agora o tal director municipal. Só que eu não ia ganhar 5 mil euros. Ficou assumido então que ia ser emitido um despacho (o que tornei público na carta aberta) para exercer as funções correntes na Câmara Municipal em pleno direito. Mas também foi-me dito que só poderia ser posto em prática a partir de Janeiro de 2018, porque se fosse antes ia haver problemas dentro do município e dentro do partido. Acedi e confiei. Mas há pessoas que conseguem mentir para 5, 6 ou mais pessoas e levar a sua vida na mesma. Dito isto, fomos às eleições nacionais do partido, onde o presidente da Câmara se instalou nos mais altos cargos. Tudo correu exactamente para o lado dele conforme o intuito. Para o meu lado, chegado o final do primeiro trimestre, tratei de questionar para quando o despacho para iniciar o processo de investimento, conforme o compromisso. Disse que, enquanto não houvesse despacho, não ia estar a interferir na gestão da Câmara Municipal. Sem assinatura, não há adjunto.

 

Quando é que se sentiu que a questão estava a resvalar para o lado pessoal?

Foi logo aí. As pessoas às vezes iludem-se: andam com um ‘carrito’ velho de muitos anos e dão-se bem com todos. Depois começam a andar com um carro melhor e mudam de postura. Eu diria que é quando se dá a tomada de posse das novas funções [do Salvador Malheiro], com muita televisão, que as coisas começam a entrar num outro patamar. Então eu tinha dois caminhos. Dizer que não ou entrar nessa ilusão (e tinha a possibilidade de entrar) e permitir que o município de Ovar ficasse conforme estava. O município de Ovar não tem uma escada rolante, é uma coisa incrível. O executivo inaugura uma caixa de Multibanco como se estivesse a conquistar o mundo, após 60 anos de Multibanco. A certa altura, começa-se a perceber que o documento do despacho vai ter eventualmente de aparecer. O presidente resolveu não assinar o documento. Disse “o vice-presidente [Domingos Silva] não aceita isto”. Ao que respondi “quando quiseres, assinas a minha exoneração, porque eu não me vou demitir”. É um problema da política: há pessoas que pensam que quem os rodeia tem de viver a vida que eles querem.

 

Leia a entrevista na íntegra na edição nº389 do nosso jornal.

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