Sound Waves ’24: quem tem medo do kitsch techno? 

Escrever uma crónica sobre a 19.ª edição do Sound Waves encerra dificuldades acrescidas, em face do artigo publicado há cerca de um ano neste mesmo jornal. 

Comecemos pelo melhor e já vamos à música propriamente dita: a edição de 2024 afigurava-se um teste logístico de fogo para a organização. O cartaz novamente recheado de super-estrelas fazia antever uma nova invasão em massa de jovens ravers às imediações do Estádio da Barrinha – o que acabou mesmo por acontecer. A afluência foi, no mínimo, similar à do ano passado, e o staff desta feita não faltou à chamada. Num breve vox pop realizado pelo N, foi notória a maior satisfação do público face ao acesso e à higiene das casas de banho, agilidade nas filas para alimentação e bebidas, disponibilidade de água para hidratação, espaços adicionais com sombra (a tenda na frontline é a grande vitória desta edição) e para descanso confortável. Enquanto houver estrada para andar, a festa vai continuar, com a certeza de que a organização do Sound Waves deu o salto qualitativo que seu público exigia.

É muito difícil classificar e avaliar o Sound Waves 2024. Pode um festival de grande dimensão (para a escala portuguesa), que se superou consideravelmente nas questões logísticas e organizativas, com um público fiel e enérgico, com um palco bem arquitetado (a simular, na medida do possível, as warehouse raves), com um espetáculo de luzes e de visuals pouco visto por cá, ser um festival que, como apreciador de música techno, tenho dificuldade em recomendar? É a pergunta que me tem ocupado a mente durante a última semana. 

E a resposta é sim, pode. O que se assistiu, musicalmente falando, nesta edição, foi um acto contínuo da edição de 2023: a consolidação (sem retorno?) do que intitulo de kitsch techno, isto é, uma variante de techno para quem não gosta assim tanto de techno. Como pode um DJ set de techno ter viabilidade com uma ou, no máximo, uma hora e meia de duração? Será sequer justo para com os DJ sets de techno tal nomenclatura? Ou seria melhor chamarmos showcases? Como explicar a dispersão dos headliners (Sara Landry e I Hate Models) em horários que não são de peak time em nenhum enquadramento possível? Que consideração teve a curadoria por Stëh e Madson Carpenter ao colocá-los num horário tão precoce face ao ser registo? Faz sentido um booking de tantos artistas com um registo relativamente similar, o que impossibilita qualquer proposta de alinhamento minimamente coerente? São questões que ficam sem resposta.

Se as decisões da curadoria de artistas em cartaz se prendem com declinações comerciais ou com mero desconhecimento da scene de techno, sendo um debate, interessante, acaba por resvalar no inócuo. Numa conferência recente realizada em Bialystok (Polónia) sobre o estado atual do techno (promovida pelo projecto Immersions), o DJ e produtor sérvio Milos Martinov (Commissar Lag no mundo do DJing) dizia que “com a explosão de RP’s, influencers e revendedores de bilhetes em torno da indústria, já não vendemos a festa, vendemos o hype da festa”. A massificação do Sound Waves, como todas as massificações dentro do realismo capitalista, não poderia redundar noutra coisa: é vendida uma experiência, antes de ser vendida uma proposta musical. E, em última instância, na fase final de consolidação, é a própria perfeição cenográfica e organizativa o fim em si mesmo, e o modelo de negócio que permite a viabilidade do evento. Dito de outro modo, o festival auto-sabotou, com o seu sucesso comercial, qualquer névoa de identidade que lhe poderia ser atribuída em anos anteriores. Como escrevia na crónica de 2023, “quem não estiver inserido no meio irá achar que hard techno se resume a intercalar drops com kicks distorcidos e vocals de temas pop”. Tal como esperava, o que se viu foi uma amálgama ininterrupta (desta vez, felizmente, foi menos frequente um DJ começar o seu set “do zero” sem precisar de dar sequência ao acto anterior) de sonoridades sem ginga, sem groove, sem melodia. E não, não é de estética do feio que estamos a falar. Antes fosse. É mesmo de estética kitsch, isto é, de estética do mau gosto. Como afirmou Mareena Nagel, DJ residente no Tresor em Berlim, “a redução drástica do attention span dos mais novos tem levado a que os DJ’s toquem para fazer as pessoas gritar, chorar ou cantar algo reconhecível”. A foto e o vídeo seguintes são suficientemente auto-explicativos (ambos retirados do set de Franck).

Sintomática deste sucedâneo de techno em que o rosto e o sorriso são o valor de troca primordial é a t-shirt que Deborah de Luca vestiu, onde se lia em letras garrafais “Acid” – sem que a DJ napolitana tenha passado uma única faixa de acid techno ao longo de todo o set. Uma atuação, de resto, irreconhecível (e mesmo desrespeitosa para com a artista): reconhecida pelo minimal techno árido e apaixonante que a popularizou na década passada, apresentou um set totalmente descaracterizado, onde chegou a tocar no hardcore e no hard dance. Ainda assim, atuando depois de Stëh, Madson Carpenter, Ornella e Miss Sheila, seria virtualmente impossível à italiana tocar no seu registo preferencial. Por motivos diferentes, a outra desilusão do festival foi I Hate Models: o génio francês deu um ar da sua graça com algumas faixas de trance e techno-trance a que costuma recorrer, mas esteve longe do controlo dos ritmos e das emoções do público que lhe são característicos. Pareceu cansado, mesmo esgotado, sem a energia e a irreverência de outros tempos. Sendo justo, é muito difícil manter o nível com um volume de atuações tão insano como o que tem atualmente – a massificação é uma máquina impiedosa que descaracteriza e vende o mesmo embrulhado com leves subtilezas. Uma breve nota para a outra cabeça de cartaz, Sara Landry: sem os flashes em cima da sua beleza estonteante, fica mais difícil encobrir a sua falta de destreza no CDJ.

E como em terras de cegos, basta um olho para ser rei, a maior atração positiva desta edição acabou mesmo por ser o espanhol Vendex. Sabemos que as comparações com SNTS são inescapáveis (a começar pelo visual), mas não se deixou intimidar pelo cansaço visível nos ravers (tocou às 13h) nem pelo facto de dispor de apenas uma hora de set. Não resistiu às vocals de faixas conhecidas, mas, pelo menos, foi fiel ao schranz carregado de detalhes na percussão e aos kicks brutais que desafiam até o melhor o sistema de som.

Créditos: @fv_productions

Num festival que conjugou certezas prévias e dúvidas quanto ao futuro próximo, e num artigo com mais perguntas do que respostas, deixo uma última questão: a febre dos BPM’s altos, que se tornou um fenómeno entre os ravers tiktokers, tem mais quantos anos de janela de oportunidade para fazer dinheiro antes da bolha rebentar? Ou, pelo contrário, numa sociedade em que, como escreveu o filósofo francês Paul Virilio, “a velocidade é o próprio poder”, o kitsch techno é um novo normal que veio para ficar?

É possível que tenhamos a resposta já no dia 8 de fevereiro de 2025, data da Winter Edition do Sound Waves, no Pavilhão Carlos Lopes em Lisboa. Embora ainda sem lineup anunciado, a primeira rodada de bilhetes já se encontra à venda.

 

Créditos: DR

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