Carmen Souza, 41 anos, intérprete e compositora luso cabo-verdiana, foi uma das convidadas do Ovar em Jazz 2023. Os sofás do café do Centro de Arte de Ovar foram o espaço de uma breve entrevista do Jornal N em parceria com a rádio AVfm. Interconnectedness é o título do álbum que motiva esta tour europeia com paragens por Portugal, além de Ovar, nas cidades de Covilhã, Setúbal, Lisboa, Aveiro, Marco de Canaveses, Mealhada, Seia e Sesimbra.
O novo álbum explora ainda mais as suas raízes cabo-verdianas…
Cresci com a música cabo-verdiana por causa dos meus pais. Cresci a ouvir a música, a comer a comida. São pequenas ilhas que eles trouxeram para fora de Cabo Verde. Há grandes comunidades aqui em Portugal, como nos Estados Unidos e na Holanda. Então é a minha identidade, faz parte de mim essa herança genética. Apesar de que cresci a ouvir também outro tipo de música, e daí veio a minha curiosidade com o jazz e a vontade de fazer esta ponte.
A Carmen lançou no ano passado o álbum que motiva esta tournée, que sai na sequência da pandemia. Que diferenças encontra entre esse período e o atual? Gravaria o mesmo tipo de álbum hoje?
Foi um disco que viveu um bocado da introspeção da pandemia. Tínhamos acabado de lançar o disco The Silver Messengers e a nossa tournée de 30/40 datas foi cancelada. Quisemos transformar aquele momento menos bom em algo experimental. Dedicamo-nos mais ao som e ao estúdio. Eu e o Theo Pascal somos colaboradores há muitos anos, temos uma grande paixão por explorar e evoluir o nosso som e composição. Acabamos por ficar presos em Lisboa, quando estávamos entre concertos. Estávamos no estúdio e ficámos a experimentar coisas e a tirar sons de instrumentos menos convencionais. Se não houvesse pandemia provavelmente este álbum seria diferente.
Disse que este disco mostrou que somos todos iguais. Até que ponto isso não é uma mensagem de esperança? Na verdade, a pandemia também expôs algumas desigualdades e incentivou o desânimo…
Sem dúvida. A pandemia acentuou e acelerou essas desigualdades. No pós-pandemia vejo mais desigualdades, por causa das crises e guerras numa altura em que estamos a tentar refazer a vida. Fiz este álbum com uma mensagem de esperança e celebração da vida. Também tem algo de perda e de frustração. É um disco muito humano.
Em relação ao estilo, referiu numa entrevista que, quando canta em crioulo ou noutra língua, não está a fazer uma imposição, mas sim a revelar a sua forma de expressão, voz e identidade. Esse registo mantém-se neste último disco. Diria que essa é a marca que a distingue e que faz com que as pessoas a reconheçam?
A nossa música é muito diferente: exploramos Cabo Verde, o jazz, temos uma voz muito própria, as pessoas já identificam esse trabalho. O facto de cantar em crioulo, francês, alemão ou português não importa. Sou uma amante de línguas: durante a pandemia fui estudar francês e alemão. Tudo isso foi inspiração para este álbum. Como digo na música “Kuadru Pintadu”, todos fazemos parte de um grande quadro. Todos temos línguas diferentes e contribuímos para a musicalidade como humanidade.
Falando mais do álbum em si, o tema “Silver Blues” destoa um pouco dos outros, não remonta tanto às suas raízes africanas. Consegue explicar-nos essa inclusão?
O “Silver Blues” é um blues antigo. É um tema que eu e o Theo dedicamos ao Horace Silver. É um dos temas do álbum em que abraçamos um pouco mais a inovação, no sentido em que a bateria foi gravada de forma pouco convencional, e esse som envolve a música toda. Noutros temas também tentamos arranjar reverberações naturais de espaços alternativos. Queríamos ir gravar para igrejas, mas como não foi possível, fomos para túneis.
Como tem sido a reação do público português até ao momento nesta tour? E em comparação com França e Alemanha?
Na Alemanha o público é muito atento ao detalhe, muito silencioso até ao fim, onde explode, e faz-nos voltar ao palco umas três vezes para encores. Quando se fala de música os alemães são muito quentes e acolhedores. Em França são muito entusiastas, estão habituados à mistura da África francófona com a música francesa. Em Portugal são sempre um bocadinho mais tímidos, mas depois de se estabelecer uma relação as coisas melhoram.
Quando era criança, a Carmen começou a cantar num grupo gospel. Como isso a influenciou em termos musicais? Foi o que a levou a cantar jazz?
O gospel e o jazz têm uma expressão diferente. Enquanto no gospel se preza muito a força, a energia, o jazz vive mais de dinâmica, de respiração, de musicianship: estarmos no palco e prezarmos todas as notas que são tocadas pelos outros músicos. O gospel foi o meu início, fez parte do crescimento em palco em que comecei a perceber o que é cantar e ouvir os outros… chegamos a fazer concertos com à volta de 50 cantores. Só com o Theo Pascal é que descobri o jazz. Ele já tinha uma boa coleção de álbuns em casa de Charles Mingus, Miles Davis, etc. e todos estes artistas tinham uma particularidade: tinham uma identidade. Horace Silver dizia que o grande objetivo dele era que as pessoas o ouvissem e soubessem exatamente quem estava a tocar.
Depois de um ano de universidade, desistiu para prosseguir a carreira musical. O que a levou a tomar essa decisão?
Foi a convite do Theo. Confesso que na altura estava pouco interessada no curso. Queria descobrir música. Na pandemia voltei outra vez (a estudar). Foi bom ter voltado em 2020 porque já voltei com uma maturidade diferente. Fui estudar em Londres: é muito interessante ver a diferença de culturas e a maneira como se ensina. O nome do álbum foi inspirado num filme que vi através da universidade, Auf der anderen Seite, de Fatih Akin. O filme tinha vários atores e todos estavam interligados sem nunca se cruzarem. Isso fez-me pensar no quanto estávamos ligados no mundo inteiro a viver exatamente a mesma coisa fechados em casa.
Anteriormente lançou The Silver Messengers, numa homenagem a Horace Silver. Como descobriu a sua música e o que nela a cativa?
Através do Theo. Ele disse “existe um pianista que faz jazz com cheiro a Cabo Verde. Achei tão interessante o facto de ter influenciado tantos músicos com um swing tão único – um ‘swing da lusofonia’. Ouvi já vários músicos, como o Herbie Hancock, a dizerem que ele tinha um funk. Foi muito interessante descobrir que, muito antes de eu nascer, já estavam a fazer essa mistura de Cabo Verde e jazz. Nasci em Lisboa. Não podia ser totalmente purista: ouvi música de Cabo Verde, mas tanta outra me influenciou que quis fazer um Cabo Verde à minha maneira.
Usa muito a sonoplastia para imitar instrumentos musicais com a voz. Como é que descobriu esta técnica e o que a fascina nela?
Desde pequena ouvia música instrumental. O meu pai tinha vários vinis de música instrumental de Cabo Verde. Lembro-me de tentar imitar esses sons. Mais tarde, ao descobrir o jazz comecei a fazer o mesmo: copiar solos de John Coltrane e não usar a voz de maneira convencional.
Como reage hoje, com mais maturidade artística, às comparações com Césaria Évora, Nina Simone, entre outras?
É claro que é uma grande honra. Comparar e substituir vem da condição humana. Todas estas cantoras que me influenciaram tinham uma voz própria. A Cesária era a Cesária porque tinha aquela voz, a Nina porque tinha aquela personalidade. E eu também sigo o meu caminho.