Quais são os limites do que se considera ser uma notícia? Quando a notícia é tão recorrente que ameaça a sua própria semântica do termo, a relevância do acontecimento perde-se? Inverno após Inverno, a notícia é sempre a mesma: as marés vivas, as chuvas fortes e as tempestades fazem a água do mar galgar até à marginal e à Avenida do Infante D. Henrique, semeando o pânico entre as residências e os estabelecimentos comerciais imediatamente adjacentes. Nos dias seguintes, os engenheiros e técnicos da Câmara Municipal juntamente com a polícia patrulham o espaço para salvaguardar a segurança dos transeuntes, a Agência Portuguesa do Ambiente visita o local para emitir mais um relatório de burocrática normalidade.
O avanço do mar tornou-se, efectivamente, uma normalidade para os locais, numa tão contemporânea quanto trágica inversão do que antes se chamava estado de emergência. Essa figura, que se popularizou na última pandemia, explica muito do cenário humano encontrado ao caminhar pela marginal: o tempo amoleceu e neutralizou tanto o escândalo como a indignação, e o que observamos aproxima-se mais de uma profissão de fé vagamente infundada do que de uma denúncia do que é já indenúnciável de tão insuportável. Na zona sul, já se assumiu que o regresso da praia é uma utopia. Em dias mais agrestes, a água acaba mesmo por entrar pelos edifícios, espera-se pelo fim da tempestade, limpa-se os detritos e volta-se à rotina, que amanhã é um novo dia. Há dois Invernos que as vedações colocadas por cima das rochas para impedir as incursões dos mais aventureiros se encontram danificadas, sem terem sido reparadas entretanto. Há mais de um ano que o mítico bar de praia Ti Albano fechou, sem, que se saiba, qualquer compensação indemnizatória. Na zona norte, resistem, à custa de muita areia artificial, o Reguila’s, o Maganinho e o Bamboo (no sentido sul-norte), mas diz-se que o plano é “deixar cair” os dois primeiros. A norte do Bamboo, a única duna que protege o parque de campismo (situado numa zona de depressão) da invasão marítima já não têm a dimensão de outrora, o que coloca o parque em risco máximo de inundação. O próprio passadiço foi destruído (na sua maioria, cerca de 3/4) há mais de um ano e, provavelmente antevendo novo dano futuro, optou-se por não reconstruir o que o mar agrediu. Recentemente, a Agência Portuguesa do Ambiente esteve no local, para fazer o ponto da situação, acabando por reconhecer a necessidade de reparar o paredão ao longo de toda a costa (com especial enfoque na zona sul), mas sem alarmismos. A situação está, passando a citar, “controlada”.
Foi neste cenário de distopia controlada que visitamos o Bamboo, onde fomos amavelmente recebidos pela gerente, Cátia Oliveira, e pela chefe da cozinha, Maria Santos. De diferentes gerações e diferentes graus de (in)conformismo, assumiram que há pouco a acrescentar quanto ao que está à vista de todos. “As obras estão prometidas há muito tempo.”, sumariza Cátia. Limitados aos recursos próprios, a única coisa ao alcance é “proteger as vidraças com madeira”. Recorde-se que o edifício é propriedade da Câmara Municipal, mas isso não parece fazer grande diferença: “A Câmara, sim, deveria zelar, pelo menos, pelos seus espaços, mas nem isso faz.” Por seu turno, Maria, que acompanhou todo o rápido processo de erosão, prevê que “mantendo o ritmo, em três, quatro anos não haverá marginal. A pedra já foi levada, por isso a areia é um instantinho”, afirma. Apesar do Furadouro ser a sua terra-natal, é em Maceda que centra as atenções. “Há um desastre ambiental iminente. No curto prazo, até é o que mais me preocupa.”, resume. Reconhece que uma fatia considerável da responsabilidade pelo sacrifício do Furadouro “em prol de outras zonas como Porto ou Matosinhos” é das autoridades supra-camarárias. No entanto, questiona a razão do Município continuar a viabilizar “abates de árvores em zonas perto da costa” e “licenciamentos para construções à beira-mar”. Não ousa apontar uma solução eficaz para impedir a continuidade do desastre, mas garante que não é através da contínua colocação de pedras à frente do mar: “As pedras não são naturais, são apenas pousadas sem sequer estarem sedimentadas de alguma forma umas às outras. Não resulta, do mesmo modo que os quebra-mares destacados não resultam, muito menos os geotubos.”
Mais esperançoso está David Soares, proprietário do alojamento local situado na emblemática ‘Casa do Cão’. Conhecedor profundo do Furadouro devido às idas à extensa praia quando era criança, adquiriu recentemente a casa para rentabilização turística. “Naturalmente, se não tivesse esperança de que o mar será travado, não faria um investimento destes.” Luso-francês, percorre mensalmente as centenas de quilómetros que separam os dois países em projectos editoriais na área do desporto. Não tem dúvidas de que existe uma solução, porque ela já tem sido posta em prática em França. “Antes de comprar a casa, estive a pesquisar sobre as diferentes formas de combater o avanço do mar. Na zona da Bretanha, no norte de França, o mar é tão ou mais agreste do que aqui no Furadouro. Cidades como Brest, Concarneau ou Saint-Malo têm casas com o mar a pouquíssimos metros [aponta para o passeio em frente ao alojamento], e não avança mais. Foram construídas muralhas de betão com a curvatura das ondas, o que faz com a onda bata e volte para trás. Conheço também um outro sistema, através de tubos a 200 metros de profundidade, que quebra a energia das ondas e se ajusta naturalmente aos seus ritmos. França, Dinamarca, Holanda, Bélgica já sofrem com este problema há muito mais tempo do que Portugal, têm essa experiência que nós devíamos tentar replicar. Havendo orçamento, há forma de resolver.” Em suma, David está convencido do que essas soluções não avançam por três fortes razões: o custo, a vontade e a comunicação. “Já não é tempo de fazer obras de remendo de 4 milhões. Aliás, os paredões até parecem uma rampa de lançamento para as ondas. É preciso reconhecer de uma vez que 4 milhões não dá para fazer nada: são precisos 400 milhões, e que só com dinheiro europeu isso poderia ser levado a cabo. Você diz-me ‘400 milhões é um balúrdio’, mas quanto custa isto tudo a nível moral, psicológico, familiar, demolição de todas as casas da primeira linha, etc.?”, questiona. Como dizia Brecht, as pequenas mudanças são inimigas das grandes, e parece ser o caso aqui: “Já ouço falar de projectos há 15 ou 20 anos. A cada 4, muda o executivo, rasgam-se os projectos e começa-se tudo do zero, e andamos neste ciclo. Basta querer e levar os projectos até ao fim, só é preciso vontade, tempo e organização.” Recentemente, a APA convocou uma reunião com a “comunidade local” para esta ser auscultada quanto aos seus anseios. “Eu não soube da existência desta reunião, sendo que, além de ser parte interessada, os serviços municipais têm o meu contacto. Por que razão não fui contactado para essa reunião? O problema começa logo quando a Câmara nem fala com as pessoas. O povo tem de estar a par das realidades, de saber as razões pelas quais, a Câmara intervém mais, por exemplo, em Esmoriz e Maceda, quando são muito menos desenvolvidos do que o Furadouro. Não ouvir as pessoas depois leva climas de suspeição e insinuação desnecessários.”, frisa.
Leia o artigo na íntegra na edição nº404 do nosso jornal.