“Um grão de poeira suspenso num raio de sol. É aqui. É a nossa casa. Somos nós.”, terá dito Carl Sagan há 30 anos, pouco antes da sua morte, em 1996. Estamos no Monte de Ovil – Castro de Ovil para os burocratas. Hoje, casa de diversa vegetação, no passado, casa de uma comunidade proto-histórica e de uma fábrica de papel no século XIX – em qualquer momento, um depósito de história viva, disposta em diferentes substratos e construções humanas de diferentes épocas. “No Monte de Ovil tens tudo.”, começa por dizer Pedro da Silva, natural do Porto, arqueólogo e doutorando na Universidade de Coimbra com o projeto “Arqueologias da Presença em Passados Simulados”. Ovil tem sido, desde há três anos, o seu local de estudo, juntamente com as suas orientadoras Maria da Conceição Lopes (Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património), Inês Moreira (Centro de Estudos Arnaldo Araújo) e Helena Paula Carvalho (Lab2PT – Laboratório de Paisagens, Património e Turismo), da relação entre a arqueologia e a arte contemporânea. Procura no Centro Interpretativo de Ovil resgatar aquilo que não tem pruridos em chamar de “lixo”: “Não é muito elegante o termo, mas é aquilo que os artefactos são, literalmente lixo que foi abandonado pelos antigos habitantes de Ovil e é a partir dele que construímos narrativas” (risos).
Falamos essencialmente de peças de cerâmica produzidas pelas sociedades antigas para uso comum e quotidiano: “Frequentemente, nos estudos arqueológicos, esta cerâmica é ofuscada pela cerâmica considerada de luxo, associada a uma elite.” Por não se inscreverem na simbologia associada à aristocracia e à burguesia que se movimentam nos meios culturais, esses artefactos vão sendo remetidos para segundo plano. Certamente inspirado pelo célebre astrofísico norte-americano, Pedro da Silva tem-se proposto a perfurar essa bolha intelectual por intermédio das materialidades comuns e das simbologias comuns – como explicou na visita mediada a Ovil, “é preciso que nos desprendamos dos preconceitos assentes desde a era industrial” relativamente às hierarquias de valor apresentadas como neutras e incontestáveis. A propostas conceptuais deste tipo tem-se dado o nome de “práticas pós-nostálgicas”. O termo foi inicialmente proposto pelas curadoras Inês Moreira e Aneta Szyłak, num curso que desenvolveram em 2019, e posteriormente explanado na obra Post-Nostalgic Knowings (2020) com edição da primeira. Este termo serviu para “desenvolver um diálogo e conexões entre a história política, a comunidade e as artes visuais contemporâneas em sítios extremos e espaços pós-industriais, de modo a quebrar narrativas nostálgicas do passado e desestabilizar a sua interpretação no presente, resultando em outras, novas e que sirvam novos propósitos”.
Embora não diretamente referido, o período modernista, a partir do qual objetos comuns e funcionais (como o urinol de Marcel Duchamp) entraram no circuito museológico, encontra-se também entre os pedaços de história que motivam a investigação: “reutilizar o ‘lixo’ industrial como um artefacto de importância cultural”, como questionamento do que é afinal, considerado um artefacto arqueológico.
Este questionamento começou em 2021: Pedro da Silva deparou-se com um Ovil “em estado institucionalizado”. Em pleno confinamento, fez chegar por correio ao artista plástico João Gomes Gago fragmentos de cerâmica comum recolhidos em Ovil, lançando-lhe um repto: “O que nos contam estes artefactos considerados ‘lixo’ pelos arqueólogos?” À discussão sobre as “narrativas cristalizadas na arqueologia” seguiu-se a produção de um diário arqueológico do artista, divulgado na revista ArteCapital.
Em 2022, a performer Ana Rocha e João Gomes Gago deram continuidade a este “trabalho especulativo-artístico” com o desenvolvimento de obras artísticas in situ, isto é, no próprio local de Ovil. Ana Rocha protagonizou uma série de performances, onde ocupou os espaços da antiga civilização de Ovil de cor, vida e movimento. Ao passo que João Gomes Gago expôs a obra “Paper mill ruins (1836-1970)”: uma pintura de duas lonas brancas em tons de vermelho e preto, de seguida dispostas, uma no interior das ruínas da antiga fábrica de papel, outra no exterior, para usufruto de quem fosse ao local a seguir. Este trabalho foi apresentado no “29th EAA Annual Meeting in Belfast” e publicado na revista internacional TURBA – The Journal for Global Practices in Live Arts Curation. No momento da reportagem, já nenhuma das duas lonas se encontrava no mesmo local onde foram instaladas.
No ano transato, o projeto chegou ao Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, com a exposição “Artefactos do Descarte”, uma “jornada exploratória pelas sete celas do Criptopórtico de Aeminium”. Cada cela expôs um estágio do processo metodológico, científico e artístico de Pedro da Silva e o seu projeto de doutoramento: fragmentos da proto-história, cerâmica, fotografia, pintura e vídeo foram recombinados e recontextualizados de forma a revitalizar o estudo desta época no presente e no futuro, ao convocar pós-materialidades em diálogo com a presença humana em Ovil.
Apesar da “descoberta” arqueológica de Ovil datar de 1981, existem registos na imprensa muito anteriores, que mostram que o local já era conhecido por algumas pessoas antes da sua institucionalização. Pedro da Silva encontrou, no jornal O Comércio do Porto de 1931, o seguinte excerto, da autoria do antiquário Rui de Serpa Pinto, que parece remeter para o pico do Monte de Ovil, de onde é possível avistar a praia de Esmoriz e a praia de Paramos: “Mais perto e como que a beijar-lhe os pés, o lindo e formoso estuário da Barrinha e para além de tudo isto, o mar infindo, tendo a servir-lhe de pano de fundo o azul-celeste do firmamento. Como ser encantador ver dali um pôr do sol!…”, pode ler-se. No entanto, não é possível, a partir do excerto, pontuar a localização exata. O que Pedro da Silva não tem dúvidas é que Ovil permanece como um “espaço de resistência”, na continuidade do uso do bronze, apesar da introdução incipiente do ferro naquela região geográfica peninsular, ou na persistência de práticas manuais na produção cerâmica, apesar da introdução de técnicas de roda. Há elementos do povoado cuja linguagem orbita em torno do simbólico e do ritualístico, de muito difícil acesso. No entanto, “conseguimos alcançar algumas luzes pelo uso de novas tecnologias de análise e prospeção”.
Atualmente, Ovil é pautado pela presença de espécies autóctones e pelo património geológico milenar de xisto, vigiados de perto pelo riacho, nesta altura do ano com um caudal generoso. Um local que, quando revitalizado, permite que, a partir do tal “firmamento”, todos “possamos ser arqueólogos e políticos”.
Foto de capa (antiga fábrica de papel): Sara Figueiredo