Sound Waves ’23: a consagração do tekno como o novo big room (com fotogaleria)

Por João Mendes

O dia 8 de julho de 2023 assinalou a maioridade do festival Sound Waves, que voltou a picar o ponto no que à música eletrónica diz respeito, levando milhares de ravers às imediações do Estádio da Barrinha, em Esmoriz. Restam poucas dúvidas de que terá sido a edição com maior afluência de sempre, justificando assim um brutal investimento no cartaz. Já quanto à fluência do mesmo, musical e logisticamente falando, contemplou altos e baixos e, no fim, trata-se sobretudo de uma questão de gosto, subjetiva, de opções de curadoria e organização ao encontro de determinados tipos de público, assim como determinados modelos de negócio. Mas vamos por partes.

Para compreender este Sound Waves precisamos de recuar ao ano de 1994: nesse ano, um homem chamado Terry Mullen publicou um comentário num fórum de discussão de um jornal americano sobre o facto de, após ter ouvido falar pela primeira vez do grupo terrorista alemão Baader-Meinhof, ter passado a ver referências ao grupo “em todo o lado”. Este fenómeno cerebral, conhecido como atenção seletiva, tem várias implicações nas nossas vidas. Uma das quais a tendência inevitável para acharmos que somos os primeiros a reparar numa determinada moda. Na verdade, estatisticamente, 90% das pessoas só se apercebem de uma moda quando esta já se encontra na curva descendente de popularidade.

Uma Blackworks à portuguesa

O departamento de curadoria deste Sound Waves pareceu atacado por esta armadilha: um cartaz com nomes como Øtta, Charlie Sparks, Nico Moreno ou 999999999 poder-se-ia considerar um alinhamento com “artistas emergentes” talvez entre 2021 e inícios de 2022. Apesar de serem, na sua maioria, DJ’s jovens e com uma carreira curta, tal não significa que, ao presente momento, faça sentido considerá-los emergentes: são estrelas consagradas no universo da música techno, com gigs um pouco por todo o mundo ante plateias de milhares de pessoas e, sobretudo, em festivais e não em clubes. À escala portuguesa, são artistas que já representariam um elevadíssimo esforço financeiro para qualquer discoteca. Por desconhecimento ou por modelo de negócio (difícil saber), o booking destes nomes ilustra bem o quão qualquer um de nós, mesmo inseridos no meio, está permeável a cair na armadilha de percecionar as modas tardiamente. 

A implosão do coletivo francês Possession, no verão de 2022, e o aparecimento do seu sucedâneo, a espanhola Blackworks, talvez devesse ter sido analisado com maior atenção por parte da organização do Sound Waves. Assim, acabou por presentear os ravers com uma imitação barata da congénere espanhola, que se pauta por uma exploração agressiva do fenómeno raver tiktoker, que já nada tem a ver com a génese fundadora, de rutura e secessão, da Possession: mais drops, mais quebras abruptas, mais vocals que ficam no ouvido, menos viagem, menos percussão, menos fluidez. Em suma, menos techno: uma sucessão de kicks distorcidos simples intercalados com vocals, sem transparecer o mínimo de estrutura organizativa do timetable. Foi notório que a prioridade não foi organizar os artistas articulando os seus estilos numa sequência harmoniosa, mas antes ordená-los por popularidade tendo em conta os mais prováveis peak times do evento.

999999999

O underground pop

Um outro dado interessante que pode ser confrontado com a entrevista realizada no N junto de um dos promotores do Sound Waves reside na reflexão sobre o que é, afinal, o movimento underground. Em linhas gerais, Bernardo Bernardes explicou-o sinteticamente: “Não é música que passa na rádio ou música para as pessoas cantarem.” Efetivamente, esta é uma das características da música convencionalmente entendida como underground. O contrassenso foi mesmo a quantidade bastante assinalável de vocals e riffs próximos da cultura de massas a que se assistiu. Houve elementos para todos os gostos: a famosa track que abre o filme Blade, “Voodoo People” e “Smack My Bitch Up” dos The Prodigy, “O Barbeiro de Sevilha” de Gioachino Rossini, “Hollaback Girl” de Gwen Stefani ou “Bohemian Rhapsody” dos Queen – num tenebroso remix para hard dance tocado por Cristobal Pesce. De ressalvar que algumas destas tracks/trechos passaram mais do que uma vez ao longo do evento.

Se isto significa, por si, que a qualidade do produto final foi menor? Não necessariamente. A coexistência entre cultura popular, cultura erudita, cultura de massas e contra-cultura sempre existiu, com maiores ou menores restrições. Cada uma serve diferentes propósitos e contém validade e legitimidade intrínseca. O que já parece mais difícil de compreender é utilizar a bandeira do movimento underground como chamariz sem que depois haja uma manifestação prática da mesma no evento.

Cristobal Pesce

As nomenclaturas existem por algum motivo

O ecletismo da edição do ano passado foi substituído por uma maior homogeneização em torno de diferentes subgéneros da música de rave, sempre orientados para o registo mais comercial dentro do subgénero: o industrial techno comercial de Nico Moreno, o hardgroove comercial de Ornella, o tekno comercial de Fatima Hajji e 999999999, o trance comercial de Indira Paganotto, o psytrance comercial de Øtta, o hardcore/tek comercial de Basswell ou o hard dance comercial de Cristobal Pesce. Contudo, esta aparente diversidade cabe no chapéu amplo do tekno: uma variação do techno com menos textura melódica e menos percussão, onde o kick potente é o centro da bassline, dispensando hi-hats, snares ou claps

De uma forma ou de outra, com os BPM’s mais lentos ou mais rápidos, todos os supracitados acabaram por se centrar neste subgénero que é, ele sim, a grande tendência da música eletrónica atual, e não o hard techno, como referiu Bernardo Bernardes na entrevista ao N. Na verdade, o hard techno é um registo de que há poucos vestígios nos dias de hoje: tem em comum com o tekno um kick poderoso (o que pode levar a confusões), mas dispensa de forma quase total vocals, drops, interrupções abruptas de ritmo, contendo por outro lado uma vertente de percussão incomparavelmente mais rica e versátil face ao tekno.

Um exemplo de hard techno antigo:

 

Um exemplo de hard techno atual:

https://soundcloud.com/raekke-imminent

Um exemplo de tekno

https://soundcloud.com/cataclystek/sets/tekno

Na verdade, num sentido estrito e purista, o techno esteve presente no festival apenas até à entrada em palco de Øtta: começando no melodic techno de Karlos Molina (uma agradável surpresa desta edição), passando pelo techno mais minimal e cru de Carlos Manaça e Miss Sheila, e fechando com um set muito completo de Du/Art, o melhor de todo o festival: mexido, com groove, controlo dos tempos, variado nas percussões e sem quebras abruptas para fazer entrar vocals descontextualizados. O único senão foi mesmo a duração: uma hora soube a pouco atendendo ao andamento apresentado pelo português.

Alinhar o “inalinhável”

É justo, ainda assim, referir que esta edição conferiu uma situação inédita: nenhum cartaz na história do Sound Waves contemplava tantos artistas com tanto hype em simultâneo, com tanto estatuto e consequente pressão de agentes e promotores. Este constrangimento não implica, ainda assim, que não fosse possível organizar o timetable de outra forma. O alinhamento, um pouco arbitrário, forçou, de certo modo, que cada ato existisse autonomamente, em vez de uma articulação musical entre a última track de um DJ e a primeira do seguinte. Ao invés, optou-se pela fórmula mais comum em festivais: parar a música, para que cada ato pudesse iniciar e fechar o set consoante o seu gosto e planeamento prévio. Tendo em conta a quantidade de estatutos a que era necessário atender, e tendo em conta o timetable lançado, esta disposição acabou por corresponder ao esperado – ainda que não seja o formato mais feliz em música eletrónica.

Em nome de uma maior profundidade musical, talvez tivesse sido preferível colocar menos DJ’s e sets com duração superior a uma hora ou uma hora e meia. Quem já esteve atrás de um deck sabe que um set consistente precisa de ter, no mínimo, uma duração de duas horas, para que se possa avaliar um sentido de construção mais alargado das faixas, ritmos e timings. Qualquer um dos nomes do alinhamento tinha a experiência e a capacidade para o fazer: a opção, aparentemente, foi mais ao encontro de uma apologia da velocidade, do clipe, do reel, em suma, da fragmentação ao serviço da viralização. 

O exemplo mais gritante acabou por ser o de Nico Moreno: o jovem DJ e produtor francês é um dos casos em que a fama parece ter obliterado os seus talentos. Outrora um dos produtores mais talentosos da sua geração no subgénero do industrial techno, hoje destaca-se mais pela interação com o público, os gestos, os drops, as danças. Os seus sets são mais performance e espetáculo do que propriamente música – e não por falta de capacidade do próprio. Uma vez que alguns dos artistas que subiram a palco possuem um status dentro da indústria incomparavelmente superior ao do festival, é difícil aferir se a organização teria alguma possibilidade de suplantar os artistas e os agentes, condicionando a condução do set ao encontro de um conceito menos comercial, ou sequer se isso foi, em algum momento, intenção dos curadores. Resumidamente, com este elenco, seria virtualmente impossível apresentar um alinhamento coerente sem que, eventualmente, se caísse na “uniformização dentro do caos”, quer sonora quer dos próprios BPM’s – que, a certa altura, não têm mais por onde subir.

Notas logísticas: do melhor ao pior

Porque um festival não se faz apenas da música que ressoa dos subwoofers, é importante que as condições organizativas e logísticas sirvam a música da melhor forma, para que esta seja o elemento que o espetador recorda quando a festa termina.

Ao passo que as acessibilidades no backstage funcionaram de forma impecável (a agilidade no acesso a diferentes zonas do recinto para efeitos de cobertura foi sempre salvaguardada pelo staff, mesmo nas horas de maior afluência, tal como a resposta a dúvidas e a facultação de senhas para refeições e bebidas), o mesmo não se pode dizer no que respeita ao atendimento ao público. Alguns ravers queixaram-se da falta de torneiras para refresco, de zonas de sombra e de descanso, assim como das longas filas para o acesso às senhas ou às casas de banho. Outros testemunhos deram conta de períodos da noite onde faltaram papel higiénico, cervejas e águas (acabando por ser repostos mais tarde).

Parece agora mais claro que a organização foi surpreendida pela afluência de público acima do esperado: o que, por um lado, premiou o ótimo trabalho de divulgação e comunicação, mas, por outro, expôs as deficiências de staff e espaço, o que levou a amontoados de lixo e focos de insalubridade que terão de ser acautelados na edição de inverno (entretanto anunciada para 2 de dezembro, em Lisboa) e na de 2024, de forma a impedir que alguns espetadores prefiram continuar a assistir aos concertos da parte de fora do recinto.

Em jeito de sugestão, talvez alocar mais recursos para a garantia de um ambiente confortável para os ravers, mesmo que isso implique sacrificar no cachet e na projeção dos artistas.

Afinal de contas, o que fica desta edição do Sound Waves é o louvor do tekno como o grande mobilizador de massas dentro do techno e, arrisco dizer, da música eletrónica atual na Europa, tal como o big room e o progressive house o foram algures em 2013/2014. Considerando os três maiores festivais de techno em Portugal (Neopop, Sound Waves e Brunch Electronik), o festival esmorizense foi aquele que melhor compreendeu e capitalizou (ainda que tardiamente) a mudança geracional que ocorreu na transição da era do house/techno para a era do industrial/tekno.

Ao fazê-lo, contudo, exerceu um desserviço ao techno e ao hard techno: daqui a duas décadas, esta geração dirá aos seus filhos que o hard techno estava na moda no início da década de 20 do século XXI. Quem não estiver inserido no meio irá achar que hard techno se resume a intercalar drops com kicks distorcidos e vocals de temas pop – quando está muito distante disso. 

Na melhor das hipóteses, este “techno” com a chancela Blackworks é uma espécie de kitsch do movimento underground, isto é, à luz do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg, “uma categoria de objetos vulgares e baratos que copiam referências da cultura erudita sem critério e sem atingir o nível de qualidade dos seus modelos, e que se destinam, sobretudo, ao consumo de massas”. Fazendo a ressalva de que não nos debruçamos aqui sobre cultura erudita, mas sobre contra-cultura, a fórmula de sucesso assume similitudes. Escrevia Walter Benjamin, crítico de arte alemão, no ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, que (parafraseando livremente) um dos mais poderosos catalisadores da cultura de massas é a organização de um produto em função da repetição e da facilidade de reconhecimento por parte do consumidor. Se a isso juntarmos a manufatura de uma narrativa assente na cultura de nicho, na energia da juventude e no incitamento à ilusão individualista da disrupção face à norma, temos as condições perfeitas para surfar, enquanto a moda está a nosso favor, as ondas – neste caso sonoras.

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