Oposição fala em “ataque ao último anel” da zona; autarcas em “turismo sustentável”
Nas últimas duas semanas, os executivos de Esmoriz e Cortegaça, por esta ordem, fizeram aprovar a desafectação de 7 e 6 (respectivamente em cada freguesia) hectares do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, ao abrigo do regime de utilidade pública e numa convocatória de Assembleia de Freguesia Extraordinária.
A adesão massiva da população às reuniões, apreensiva com a desafectação de uma extensa área da tutela do Instituto de Conservação da Natureza, não foi suficiente para demover a maioria absoluta em ambas as câmaras de aprovar o ponto único da ordem de trabalhos. Os executivos em questão, quer no estilo mais sorrelfa de António Sá, quer no registo mais déspota de Sérgio Vicente, justificaram a decisão com base na necessidade de continuar a apostar no “turismo sustentável”. Relativamente à urgência em agendar uma assembleia extraordinária, não foi totalmente clarificada para os presentes: Sérgio Vicente referiu que se tratava de “uma oportunidade única”, ao passo que António Sá fundamentou-se com o “cumprimento do PDM [Plano Director Municipal]”.
Este acontecimento reacende a questão sobre as tendências mais perversas em que podem cair as maiorias absolutas. Se é certo que, como Sérgio Vicente deu nota, “as pessoas votaram em mim por alguma razão”, a transposição proporcional do eleitorado para uma assembleia representativa nem sempre assenta em alicerces sólidos. A expressiva adesão quer dos esmorizenses, quer dos cortegacenses, às assembleias extraordinárias, bem como as expressões verbais e corporais perante as intervenções do executivo e da oposição, indicam de forma cabal que a democracia representativa subverteu a própria lógica que a funda: a desafectação dos terrenos não correspondia à vontade da maioria do povo de Esmoriz e Cortegaça.
Para tal, é essencial accionar um outro mecanismo falho das democracias representativas partidárias: a disciplina de voto. A quebra do seu pacto de sangue é tão rara que, sempre que acontece, a aura de escândalo impede o acesso ao pensamento de cada eleito sobre temas de acrescida sensibilidade, como era o caso aqui. A oposição e os grupos de cidadãos presentes apelaram à consciência dos eleitos sociais-democratas mais imberbes, argumentando que uma votação favorável poderia comprometer ainda mais a vitalidade ambiental do Perímetro Florestal para as gerações vindouras. A verdade é que, a curta prazo, a única diferença é que a tutela passa a ser das respectivas juntas. Contudo, uma vez que se trata de zonas indicadas em PDM como de possível construção, a oposição teme que esta votação seja a abertura de uma janela de oportunidade para acelerar a turistificação em curso.
O que leva à terceira e última lição do desfecho destas assembleias: se a democracia liberal representativa partidária emerge da intenção nobre de conjugar o interesse privado e o interesse público, funcionando com uma plataforma de mediação retórica entre eles, ela forçosamente vê-se obrigada e conviver com o seu sucedâneo negativo: o lobby. De vários quadrantes, partidários e civis, choveram críticas aos executivos de António Sá e Sérgio Vicente por, segundo a oposição, estarem a ceder aos interesses privados do Clube de Campismo do Porto (que gere o parque de campismo de Esmoriz) ao mesmo tempo que exibiam deficiências retóricas gritantes na ocultação desses alegados interesses primordiais para esta desafectação. Se, no caso de António Sá, a estratégia utilizada para legitimar a decisão baseou-se no cumprimento de um plano municipal prévio, no caso de Sérgio Vicente aplicou-se a lógica inversa: a do exercício do poder discricionário aludindo a uma ilusão de consenso através do voto, ou do desviar as atenções para particularidades vagamente laterais, como o facto de o grupo +Pinhal conter elementos ligados a forças partidárias.
Assim, pode dizer-se que o lobby não perde a sua potência corrosiva do tecido social e democrático, mesmo quando, como é o caso aqui, opera numa figura híbrida entre suspeição e factologia. No artigo “Lobby & Lithium”, publicado na revista Punkto, Pedro Levi Bismarck enquadra o lobby não como uma falha moral do sistema democrático, mas como uma inevitabilidade que, paradoxalmente, o faz funcionar: “num tipo de economia em que as categorias do chamado «interesse público» e do «interesse privado» só parecem poder existir num grau de permanente indistinção; não porque se trate de uma questão de ordem moral — passível de um determinado código de ética — ou de ordem legal — passível de um determinado enquadramento jurídico —, mas pelo papel que o próprio Estado desempenha enquanto instituição da instituição do consenso social, e que no modelo das chamadas democracias liberais opera através não do exercício da violência, mas das figuras do consenso e do lobby. Neste sentido, poderíamos dizer que o topos que melhor caracteriza e elucida toda uma ideia de democracia liberal é, precisamente, o lobby: esse local onde privado e público não só se encontram, mas se tornam indiscerníveis e quase, poderíamos dizer, intercambiáveis: onde os interesses do público se tornam os interesses do privado e os interesses do privado se tornam os interesses do público.”
A curto prazo, as mudanças no terreno serão praticamente nulas: com eleições em meio ano, terá de se esperar até Setembro/Outubro para ter a certeza se esta aprovação fará tremer ou cair a maioria absoluta do PSD nas duas freguesias, ou se a indignação popular a que se assistiu foi sol de pouca dura.